JÚRI E CADEIA DE CUSTÓDIA

Artigo publicado originalmente no site Rota Jurídica, em 26 de setembro de 2025, 8h00. https://www.rotajuridica.com.br/artigos/juri-e-cadeia-de-custodia/

  • Paulo Brondi

Sempre atrasado em relação ao resto do mundo, o legislador brasileiro andou bem ao construir as regras que definem a cadeia de custódia das provas no processo penal, optando, no caso, por já delinear o conceito do instituto[1].

Naquela que considero a melhor obra sobre o tema, o Professor Geraldo Prado ensina[2]:

Não custa sublinhar que apenas inadvertidamente eventual autor de ilicitudes probatórias permitiria a chegada ao processo de traços das referidas ilicitudes. Por isso, o exame da legalidade da investigação criminal concentrado com exclusividade no material apresentado pelo acusador em juízo é, em regra, inócuo ou no mínimo insuficiente.

Por décadas os atores do processo penal se acostumaram com a recepção passiva dos elementos produzidos exclusivamente pelas forças policiais durante a investigação do fato criminoso, orbitando a instrução processual, assim, em torno destes. Bastava, então, que a polícia investigativa procedesse, por exemplo, a uma interceptação telefônica, selecionasse os áudios que entendia mais relevantes e encaminhasse tudo na forma de relatório policial para o juízo e o Ministério Público. A defesa, por seu turno, não tinha acesso (como ainda não tem) às interceptações por completo, devendo elaborar sua tese com aquilo que já estava disponível ao magistrado e ao promotor, sem que pudesse exercer nenhum controle sobre o modo como tais áudios haviam sido manipulados.

O mesmo se deu sempre com a prova pericial: a droga, por exemplo, encontrada na casa do suspeito era manipulada livremente pela força policial e depois (supostamente) entregue à polícia técnico-científica, que elaborava o laudo pericial e o encaminhava a quem de direito, tudo isso sem nenhuma documentação cronológica.

Contudo, com a sobrevinda do artigo 158-A do CPP a situação de outrora tenderá a mudar. Com tudo devendo ser devidamente documentado e estar disponível às partes, apenas o advogado desconectado com o avanço legal e jurisprudencial deixará de questionar a ausência da entrega de tudo quanto produzido na fase policial, mormente em relação às provas irrepetíveis; e somente o promotor e o magistrado que não procuram cuidar da higidez do processo darão azo a nulidades.

Como leciona o autor citado:

Não há mais espaço para a admissão acríticas das acusações penais, pois a ordem jurídica, observada pelos mais diversos ângulos, convoca a jurisdição ao exame não apenas da justa causa para a ação penal, como também da legalidade da atividade anterior, preparatória, indagando sobre a estrita legalidade da obtenção e preservação dos meios de prova – isto é, da escrupulosa legalidade do acesso às fontes de prova e da manutenção destas fontes em condição de serem consultadas, oportunamente, pelas partes.[3]

A regra inserta no artigo mencionado visa a conceder maior segurança à prova vinda da delegacia, já que a “cadeia de custódia cuida, essencialmente, da identificação da cronologia das evidências, ou seja, da identificação de quem manuseou a prova e quando. Assim, fica minimizada a possibilidade de manipulação indevida da prova.”[4] Fica, portanto, estabelecida no ordenamento jurídico brasileiro a prova sobre a prova[5].

A cadeia de custódia é regida, basicamente, por dois princípios: 1) mesmidade; e 2) desconfiança. A respeito deles bem disserta Madeira Dezem[6]:

Pelo princípio da mesmidade temos que assegurar que o mesmo objeto encontrado no local do crime para ser periciado será o mesmo que é utilizado como base para julgamento.

Pelo princípio da desconfiança temos que não se pode pensar em confianças preestabelecidas quando se trata de prova penal. Desta forma o objeto ou documento apresentado em juízo não possui, ontologicamente, características suficientes para que se possa reconhecer com segurança que este objeto é aquilo que a parte que o tenha juntado aos autos diz sê-lo.

No júri, especificamente, a cadeia de custódia assume papel de enorme relevância, justamente porque é comum nesses processos a existência de mais de uma prova pericial (local de crime, DNA, instrumentos do crime, laudo cadavérico ou de lesões, etc). Logo, cumpre que os atores processuais – especialmente a defesa – ponham olhos cuidadosos sobre o material recebido da polícia investigativa.

O STJ já decidiu que a falta de preservação adequada do local do crime e a demora na realização da perícia comprometem a idoneidade das provas[7]. Em outra decisão[8], a mesma corte afirmou que a “inexistência de provas diretas ou a impossibilidade de reconstituição da cadeia de custódia de supostas mensagens de WhatsApp mencionadas como indício de autoria inviabilizam a formação de um lastro probatório mínimo exigido para a pronúncia.”

Em outro importante precedente, o STJ decidiu que o rompimento do lacre que veda o compartimento onde se encontra o material a ser periciado configura quebra da cadeia de custódia, sob este argumento:

fragiliza, na verdade, a própria pretensão acusatória, porquanto não permite identificar, com precisão, se a substância apreendida no local dos fatos foi a mesma apresentada para fins de realização de exame pericial e, por conseguinte, a mesma usada pelo Juiz sentenciante para lastrear o seu decreto condenatório. Não se garantiu a inviolabilidade e a idoneidade dos vestígios coletados (art. 158-D, § 1º, do CPP). A integralidade do lacre não é uma medida meramente protocolar; é, antes, a segurança de que o material não foi manipulado, adulterado ou substituído, tanto que somente o perito poderá realizar seu rompimento para análise, ou outra pessoa autorizada, quando houver motivos (art. 158-D, § 3º, do CPP).[9]

Além disso, se a defesa apontar concretamente uma quebra na cadeia de custódia, segundo esse mesmo tribunal, caberá à acusação demonstrar a sua integridade, pois “a mera afirmação de regularidade pelo Estado não é suficiente para validar a prova sem a devida comprovação da cadeia de custódia.”[10]

  • As regras da cadeia de custódia retroagem?

É de conhecimento até mesmo do mundo mineral que no processo penal vige o princípio tempus regit actum, segundo o qual a lei processual não retroage para alcançar fatos anteriores ao início de sua vigência.

Porém, é preciso entender que a preservação da cadeia de custódia sempre foi um dever do Estado-acusação, já que intrinsicamente ligada ao conceito de corpo de delito.

Nesse ponto, relevante precedente do STJ:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO OPEN DOORS. FURTO, ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E LAVAGEM DE DINHEIRO. ACESSO A DOCUMENTOS DE COLABORAÇÃO PREMIADA. FALHA NA INSTRUÇÃO DO HABEAS CORPUS. CADEIA DE CUSTÓDIA. INOBSERVÂNCIA DOS PROCEDIMENTOS TÉCNICOS NECESSÁRIOS A GARANTIR A INTEGRIDADE DAS FONTES DE PROVA ARRECADADAS PELA POLÍCIA. FALTA DE DOCUMENTAÇÃO DOS ATOS REALIZADOS NO TRATAMENTO DA PROVA. CONFIABILIDADE COMPROMETIDA. PROVAS INADMISSÍVEIS, EM CONSEQUÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL PARCIALMENTE PROVIDO PARA PROVER TAMBÉM EM PARTE O RECURSO ORDINÁRIO.

  1. Embora o específico regramento dos arts. 158-A a 158-F do CPP (introduzidos pela Lei 13.964/2019) não retroaja, a necessidade de preservar a cadeia de custódia não surgiu com eles. Afinal, a ideia de cadeia de custódia é logicamente indissociável do próprio conceito de corpo de delito, constante no CPP desde a redação original de seu art. 158. Por isso, mesmo para fatos anteriores a 2019, é necessário avaliar a preservação da cadeia de custódia.

  1. É ônus do Estado comprovar a integridade e confiabilidade das fontes de prova por ele apresentadas. É incabível, aqui, simplesmente presumir a veracidade das alegações estatais, quando descumpridos os procedimentos referentes à cadeia de custódia. No processo penal, a atividade do Estado é o objeto do controle de legalidade, e não o parâmetro do controle; isto é, cabe ao Judiciário controlar a atuação do Estado-acusação a partir do direito, e não a partir de uma autoproclamada confiança que o Estado-acusação deposita em si mesmo.

(AgRg no RHC n. 143.169/RJ, relator Ministro Messod Azulay Neto, relator para acórdão Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 7/2/2023, DJe de 2/3/2023.) (destaquei)

O tratamento íntegro de quaisquer materiais que se relacionem com o crime sempre deveria ter sido preocupação dos órgãos investigativos, de persecução e decisórios, afinal não é interesse de ninguém que uma sentença condenatória se baseie em prova não confiável.

Assim é que tem crescido diuturnamente vozes na doutrina a sustentar a retroatividade especificamente das regras a respeito da cadeia de custódia, a fim de alcançar fatos anteriores à Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime).

Nesse sentido leciona Miguel Pereira Neto[11]:

De fato, a Lei nº 13.964/2019 trouxe a sistematização expressa de procedimentos que, a rigor, já deveriam fazer parte da prática pericial brasileira, a fim de garantir a confiabilidade e, consequentemente, prestabilidade da prova. Afinal, não há dúvida de que o material periciado deve corresponder exatamente ao vestígio deixado no mundo material e arrecadado pela polícia, sem ter sofrido qualquer tipo de adulteração durante o período em que permaneceu sob a custódia do Estado (“lei da mesmidade”).

Já no âmbito jurisprudencial, novamente a palavra coube ao STJ, que fixou as seguintes teses: “1. A cadeia de custódia deve ser preservada para garantir a integridade e fidedignidade das provas. 2. A quebra da cadeia de custódia torna inadmissíveis as provas e suas derivadas. 3. A aplicação retroativa do regramento da cadeia de custódia é necessária para assegurar a legalidade e objetividade do processo penal”.[12] (grifo).

Portanto, parece não mais restar dúvida de que o regramento da cadeia de custódia pode ser aplicado mesmo para fatos anteriores ao seu surgimento formal dado no seio do Pacote Anticrime.

Referências

[1]Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.

[2]Prado, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2021, p. 122.

[3] Prado, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2021, p. 130.

[4]Dezem, Guilherme Madeira. Curso de processo penal [livro eletrônico]. – 9ª ed. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2025. Disponível em: https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/103828460/v9/page/RB-11.58%20. Acessado em 02/07/2025.

[5]Prado, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2021, p. 146.

[6]Dezem, Guilherme Madeira. Curso de processo penal [livro eletrônico]. – 9ª ed. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2025. Disponível em: https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/103828460/v9/page/RB-11.58%20. Acessado em 02/07/2025.

[7]AgRg no AREsp n. 2.460.649/MG, relatora Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 10/9/2024, DJe de 13/9/2024.

[8]AgRg no HC n. 842.436/PE, relatora Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 26/2/2025, DJEN de 5/3/2025.

[9]HC n. 653.515/RJ, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 23/11/2021, DJe de 1/2/2022.

[10]AgRg no AREsp n. 2.460.649/MG, relatora Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 10/9/2024, DJe de 13/9/2024.

[11]Quebra da cadeia de custódia para perícias anteriores à Lei 13.964/2019. https://www.conjur.com.br/2023-jun-13/opiniao-quebra-cadeia-custodia-antes-2019/. Acessado em 02/07/2025.

[12]AgRg no HC n. 901.602/PB, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, relatora para acórdão Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 12/2/2025, DJEN de 12/3/2025.

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